São Lasca


À benção, Albert Camus, Vladimir Nabokov e outros gênios da literatura que devotaram um tempo ao ofício ludopédico de arqueiro.

Eduardo Galeano, o monstro literário das Veias abertas da América Latina, definiu bem o espírito dos goleiros.

"Carrega nas costas o número um. Primeiro a receber? Primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito. Quando qualquer jogador comete um pênalti, quem acaba sendo castigado é ele: fica ali, abandonado na frente do carrasco, na imensidão da meta vazia. E quando o time tem um dia ruim, quem paga o pato é ele, debaixo de uma chuva de bolas chutadas, expiando os pecados alheios".

"Mais angustiado que um goleiro na hora do gol", cantaria outro gênio, esse da música popular brasileira, definindo com maestria a nossa divina comédia humana.

Hoje, esse cada vez mais decadente botequim virtual, presta homenagem, ainda que tardia, ao ex-goleiro Antonio Alves, ou na mais bela tradução, São Lasca.

O mais épico dos arqueiros do Vidigal Esporte Clube, agremiação da pequena e pacata cidade de Gastão Vidigal.

São Lasca, protetor dos goleiros e apaixonados do esporte bretão.

Dizem as más línguas, em tempos idos, mais precisamente na década de 80, que o nosso quixotesco herói, numa importante peleja, iniciou o ritual de quicar a bola para dar o famoso balão.

Bateu a bola no chão uma vez. Duas vezes. Três vezes. Quatro vezes. Na quinta batida, como o gramado era muito irregular, a bola quicou numa pedra e adentrou o próprio gol.

A torcida, enfurecida, invadiu o gramado para agredir o goleiro. Com os ânimos exaltados, os torcedores só foram contidos, depois que a turma do "deixa disso" apontou o banco de reservas e mostrou quem era o goleiro substituto.

Por unanimidade acharam melhor manter o goleiro principal. O nosso polivalente Alfredo, que era o goleiro reserva -- ainda mais depois de tomar algumas cachaças -- não transmitia muita segurança como arqueiro.

Ossos do ofício.

Quem nunca errou, que atire a primeira tampa de cerveja nesse pobre e reles cronista de botequins copo-sujo e outros congêneres habitados por feios, sujos e malvados, como na bela película de Ettore Scola.

Viva a nossa infame existência ao rés-do-chão.

Pompéia, saudoso goleiro do América carioca, sintetizou perfeitamente o lirismo da profissão.

"Quem mais gosta da bola é o goleiro. Todo mundo a chuta, só o goleiro a abraça".

Não está sendo fácil, ilustríssima Kátia, rebobinar nesse grande videoteipe imaginário, todos os grandes momentos da pujante carreira do nosso arqueiro.

Haja história, ébrios leitores.

São Lasca, numa disputada final de campeonato varzeano, protagonizou um dos lances mais lendários do futebol vidigalense.

Disputávamos uma acirrada final com o nosso principal arqui-inimigo, o Luzitânia Futebol Clube, LFC.

Foram dois jogos antológicos. A primeira partida, vencida pelo Vidigal Esporte Clube. A segunda, vitória do Luzitânia.

A decisão se arrastou para a prorrogação. 

Houve empate e agora a decisão seria finalizada na cobrança de pênaltis.

Novamente, empatados.

Todos os jogadores bateram, inclusive os reservas.

Sem essa de medo do goleiro diante do pênalti, caro Wim Wenders.

São Lasca defendia todos.

O problema, céticos leitores, é que o goleiro adversário também defendia todos.

Se aventou, a hipotética proposta, de liberar os cartolas para também baterem a penalidade, já que todos os jogadores tinham feito a cobrança.

Cena insólita no futebol.

Depois de consultarem as autoridades locais, o bom senso prevaleceu, vide o número de cardiopatas que deram entrada no Pronto Socorro Municipal.

Marcaram uma nova partida em campo neutro.

Na terceira e decisiva peleja, o VEC, o escrete da princesinha da Colina, vencia até os 45 minutos finais.

Quando o árbitro se preparava para apitar o final da peleja, o camisa dez do LFC saiu driblando todo o time vidigalense.

Teve jogador que foi driblado uma, duas, três vezes.

Ninguém acreditava.

Quando estava prestes a adentrar a grande área, o habilidoso jogador ainda teve a frieza de chapelar duas vezes o zagueiro Franguinha, destemido quarto zagueiro do Vidigal Esporte Clube, conhecido em toda região, por seus nada sutis métodos de combater os adversários.

Com a bravura de um guerreiro, o meia-campista não temeu a onipresença de São Lasca, que fechava o gol com elasticidade felina.

O camisa dez meneou a cabeça e avançou ao gol, ao som e a fúria de um toureiro espanhol.

Nem a chegada do homem à Lua provocou tanto espanto nos torcedores, como no lance que descreverei abaixo.  

O meia-campista driblou o nosso arqueiro quatro vezes.

Isso mesmo, incauto leitor.

Quatro vezes. Quatro vezes. Quatro vezes. Quatro vezes.   

Víamos a representação do teatro do absurdo.

O camiseta dez, com o seu espírito sanguinário e requintes de crueldade, tocou suavemente a bola em direção ao gol, depois de deixar São Lasca abatido, feito uma presa no gramado.

Os torcedores vidigalenses já deixavam o estádio, muitos com lenço em mãos, contendo a avalanche de lágrimas que escorria nos esbugalhados olhos e feria como uma navalha os solitários corações.

O que ninguém imaginava era que o nosso herói -- eu digo, sem medo -- jamais se abateu diante de uma adversidade

Quando a bola estava prestes a ultrapassar a linha que separa o gol, São Lasca, incrivelmente, jogou uma das chuteiras que calçava em direção à pelota.

Milagrosamente a bola perdeu a direção e bateu na trave esquerda.

São Lasca, conseguiu se levantar e agarrar a bola, decretando a épica vitória do time vidigalense.

Os jogadores do Luzitânia, inconformados, partiram em direção ao árbitro, mas já era tarde, pois este tinha apitado e sacramentado o final da partida.

São Lasca, rogai por nós!

O nosso domingo já não é mais o mesmo sem as suas milagrosas defesas.





Comentários

  1. Sensacional. Está contratado para outras crônicas do futebol varzeano paulistano. Muito bom!

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