Epifania 244: Parte 24



Velho Buk

Francisca se sobressaltou com tamanha desordem no apartamento do Velho. Quinze dias ausentes e o apartamento transformou-se numa bagunça generalizada. Escova de dente na sala, prato no quarto, cuecas espalhadas pelo banheiro, garrafas de uísque pelo chão, o cinzeiro transbordando de guimbas.
Que narquia é essa, hein Buk?
Anarquia porra nenhuma. Não é narquia, é anarquia, e isso aqui não é nada disso. Não confunda alhos com bugalhos. Isso aqui é bagunça mesmo.
E não é a mesma coisa?
Não é, nunca foi e nunca será, Francisca. Anarquia é ausência do Estado. Sem governo.
Só o senhor mesmo. Além de tudo agora me vem com revistinha de sacanagem espalhada pela casa. Perdeu a vergonha nessa idade?
Não perdi, Francisca, pois nunca tive – e caiu na gargalhada o Velho Buk.
Francisca trabalhava no apartamento desde que o Velho e Isaura se casaram. Era de extrema confiança. Relutou um pouco para continuar, depois do divórcio do casal, mas acabou cedendo. Tinha o Velho como um pai, por mais paradoxal que pudesse ser a situação. No fundo, Francisca se divertia com as travessuras do Velho.
Deu para andar de ceroula agora pela casa?
Tenho que desfrutar da minha liberdade agora.
Mas não comigo aqui na casa, né?
Tudo bem, Francisca. Vou por uma calça.
Deixa perguntar uma coisa. Desculpa a intromissão. Há anos vejo uma luva de lutador no guarda-roupa. Qual o motivo? O senhor coleciona?
O senhor está no céu, Francisca. A luva é de boxe. Eu fui um boxeador de prestígio na minha juventude. Rindo do quê? Eu não tinha essa barriga protuberante na época. Fui campeão paulistano pelo Clube Atlético Esparta. Nocauteei com a minha canhota muito valentão nos ringues.
Mudando de assunto, Buk, e a Dona Isaura? Tem notícias dela? Tenho muitas saudades dela.
Eu também tenho, Francisca.
Essa é boa! Muito boa. O senhor nunca ligou para ela. Perdeu um mulherão.
Ela que perdeu um partidão, apesar de não gostar de partido. Quando iremos tomar um uísque no Epifania?
Quando o Tonho puder vir para o Centro. Ele está trabalhando numa obra no Mooca. Correria, não tem mais tempo nem pra família. Já ia me esquecendo. A Bia te ligou de manhã. Até assustei com o telefone tocando naquele horário.
Ufa, apareceu a margarida. O que será que aconteceu?
Ela não quis falar, falou que ligaria novamente. Perguntou que horário te encontrava em casa. Eu respondi que essa era uma pergunta difícil. Ela conhece o pai que tem.
Se ela ligar novamente, pede o telefone dela. O dever me chama, tenho que resolver umas pendências lá no Epifania.
O Velho se trocou, despediu-se de Francisca e desceu para o Epifania. Ficou imaginando o que seria que Beatriz queria. Muito tempo que não a via. Raramente vinha a São Paulo. O Velho também nunca a visitou. Achava um martírio a viagem até o interior. Trocavam cartas.
Um ano que não via o neto. Como será que estaria? E o genro? Nunca foi com a cara dele. Sentimento recíproco.
O viço das árvores da avenida soprava-lhe os cabelos. Evocou novamente Beatriz. Lembrou da moringa de barro que ganhou em Atibaia, interior paulista, de um produtor de frutas. Segundo o produtor, o utensílio, nos tempos em que não havia energia elétrica, servia para refrescar a água. Não gelava como uma geladeira, mas também não esquentava a água, mantendo-a num frescor agradável. A relação com Bia era exatamente assim. Temperança.
Osório, uma cerveja hoje, por favor.
Que isso, Velho Buk? Vai na gelada hoje?
Preciso refrescar a cachola.
Problemas, meu amigo?
Possivelmente, Osório.
Acho que não. Tenho boas notícias. Localizei Adélia. Ela está trabalhando numa boate na Boca do Lixo. Estou com o endereço aqui. O Judenir, aquele cobrador de ônibus, que sempre está aqui, foi quem a encontrou. A esposa meteu o pé na bunda dele e ele foi para a zona esquecer um pouco a situação.
Osório tirou do bolso do avental o papel envolto no maço de cigarros, que, se por um lado era de alumínio, do outro lado tivera a serventia de ser usado como anotação do endereço da boate.
Velho Buk procurou, no bolso da calça de tergal, a lupa, para conferir o endereço. Saiu a chave do apartamento, o relógio de bolso, moedas, uma propaganda de imóvel, que havia recebido na esquina, por uma adolescente que tremulava, desesperadamente, uma bandeira do condomínio à venda. Só depois encontrou a lente. Tudo conspirando para angustiar mais o Velho.
O Velho decifrou o garrancho, que mais parecia receita de médico e depois, finalmente, pode checar o endereço, mal conseguindo conter a euforia.

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