Posso escrever os versos mais tristes esta noite


A normalidade do bar ruiu, quando ela chegou com o seu Neruda nos braços. Ela chegou pelos "tênues caminhos do sangue, até precipitar-se como um cravo noturno, até ser e não ser senão na sombra de um raio".

Um hiato no meu âmago subtraía a minha alma inquieta. "Por que precipitaste teu fogo doloroso, de repente, entre as folhas frias do meu caminho? Quem te ensinou os passos que até mim te levaram? Que flor, que pedra, que fumaça mostraram minha morada? O certo é que tremeu noite pavorosa, a aurora encheu todas as taças com teu vinho, e o sol estabeleceu sua presença celeste, enquanto o cruel amor sem trégua me cercava, até que lacerando-me com espadas, e espinhos abriu no coração um caminho queimante".

Eu, um lobo da estepe, sorvia a bebida e o encanto do momento; turvo, inebriado acalento.

"Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu", eu, um simples apanhador no campo de centeio, balbuciava versos bêbados ao amigo Vieira, este, autor de outros tipos de sermões.

O bar se paralisou, pronto pra virar geleia. Parecia o dia em que a terra parou. O comerciante não se gabava mais das incontáveis vendas feitas ao longo do dia. O senhor parou, de imediato, com os seus amiúdes prognósticos ludopédicos. O hipocondríaco cessou com as infinitas dores na bacia das almas.

A cerveja esquentava no longo balcão das ilusões perdidas. Os pecados capitais espalhavam-se pelas obscenas mesas do bar. A nossa Anna Karenina com o seu Neruda e a sua vaidade. Uma senhora a invejava; outra, com as vinhas da ira, a maldizia.

Eu e o Vieira, encantados com a lascívia da deusa. Fitávamos, deslumbrados, com olhos de cão -- famintos, diga-se de passagem.

Olhos de cão, como o médico suicida, do livro "A revoada: o enterro do diabo", do colombiano García Márquez.

A loira, não a gelada, entre um e outro copo de cólera, beliscava o marido, que não disfarçava o arroubo proporcionado.

No momento que mais apreciávamos o espetáculo e toda beleza que irradiava, não mais que de repente, a rosa púrpura, saída dos versos do Neruda, pegou o seu livro e partiu.

“Quando a canção se fez mais forte e mais sentida, quando a poesia realmente fez folia em minha vida”, ela partiu rumo à estação Finlândia. 

A noite finda desabou, como um pênalti desperdiçado, um ato não consumado, uma obra incompleta de algum autor.

Parti desolado, sem o meu Neruda, carregando todos os meus desejos, que, diluídos, escoavam no cheiro do ralo.

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Comentários

  1. Nossa meu caro amigo, como você está bucólico, parece a chuva que começa a cair nesse momento em Araçatuba...rs.Bjs!!!

    Meiri

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  2. De Tigresa para J.D.Salinger. Não seria "Olhos de Cão Produções Cinematográfica" , produtora de "Amarelo Manga" e "O prisioneiro da grade de ferro"??? Depois de toda esta produção saiu desolado sem o Neruda, sem a Anna Karenina... tás lascado meu amigo!
    Abr e parabéns pela crônica.

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